JÁ LI | Berta Isla, de Javier Marías

“Berta Isla é uma obra-prima.”

“Um romance maravilhoso.”

“Um romance excepcional.”

“Um romance soberbo.”

Estas são afirmações de alguns dos maiores críticos literários espanhóis, às quais adicionei o parecer altamente positivo de muitos leitores deste romance, entre os quais os da minha mãe e do meu irmão. Por isso, é sempre com constrangimento (e dúvidas sinceras: serei intelectualmente limitada? Possidónia?) que assumo publicamente ter ficado desiludida com um livro quase unanimemente aclamado, sobretudo por quem sabe destes assuntos como eu não sei — os críticos literários profissionais. E não, não acho que foi por ter partido para a leitura com as expectativas demasiado elevadas. No meu entender, foi antes pelo modo pouco cativante ou criativo como o autor abordou os temas — universais, intemporais e férteis — que penso ter identificado no texto.

Na forma necessariamente subjectiva como o interpretei e digeri, o romance “Berta Isla” versa sobre três temas principais:  1) A impossibilidade da transparência mútua total (mesmo daqueles que partilham, de forma íntima, uma vida inteira); 2) A existência ou não de livre arbítrio (assunto que nos acompanha, Humanos, desde os primórdios da Filosofia); 3) O medo da insignificância (sentimento muito do nosso século XXI, que parece exigir que todas as vidas sejam espectaculares, sob pena de não passarmos de zeros à esquerda, gente cuja vinda a este mundo foi como se nunca tivesse acontecido).

É possível que o facto de ter lido, nos últimos tempos, ensaios históricos, sociológicos, filosóficos e livros de memórias de gente singular e marcante a nível mundial — para além de experiências fortes vividas na primeira pessoa a propósito daqueles temas e cogitações constantes acerca dos mesmos (tão constantes que por vezes até eu me canso de mim mesma…) — me tenha proporcionado perspectivas que, em comparação, tornaram a abordagem de Javier Marías em “Berta Isla” muito menos interessante e nada surpreendente.

O filósofo alemão Wolfgang Iser escreveu que “(…) só quando o leitor produz na leitura o sentido do texto sob condições que não lhe são familiares (…) mas sim estranhas, algo se formula nele que traz à luz uma camada de sua personalidade que sua consciência desconhecera (…). Outro filósofo, o francês Maurice Marleau-Ponty, afirmou também a propósito da leitura: “(…) e de repente algumas palavras me despertam, o fogo pega, meus pensamentos flamejam, não há mais nada no livro que me deixe indiferente (…) Mas o livro não me interessaria tanto se me falasse apenas do que conheço. De tudo que eu trazia ele serviu-se para atrair-me para mais além.” (1)

Pegando nos argumentos dos filósofos, verifico que não encontrei em “Berta Isla” nada que me fosse estranho e o texto não me atraiu para mais além. E, apesar dos temas me serem muito familiares, não fui capaz de me identificar nem com Berta nem com Tomás, cujas histórias e atitudes não provocaram qualquer tipo de catarse e catalisaram apenas esta breve introspeção que agora partilho convosco (recordo que Identificação, Catarse e Introspeção/Discernimento são os momentos fundamentais do processo biblioterapêutico). Na verdade, achei os dois personagens principais bastante aborrecidos e irresolutos.

Será essa a missão de Javier Marías com este texto, fazer-nos ver que a vida é basicamente aborrecida para a maioria da humanidade e que devemos conformar-nos com essa fatalidade? Talvez. Mas é uma ideia com a qual não concordo.

Houve, contudo, um breve momento em que as palavras de “Berta Isla” incendiaram o meu pensamento (para recorrer à expressão de Marleau-Ponty), quando ia a mais de metade da leitura. Aqui estão elas:

“Os políticos nunca se atrevem a criticar o povo, que frequentes vezes é vil e cobarde e insensato, nunca o censuram nem lhe repreendem a conduta, antes o elogiam invariavelmente, quando pouco costuma ter de elogiável, seja o de que sítio for. É apenas porque se erigiu em intocável e faz as vezes dos antigos monarcas despóticos e absolutistas. Tal como estes, possui a prerrogativa da veleidade impune, não responde por quem vota nem por quem escolhe, por quem apoia, por aquilo que cala e concede ou impõe e aclama. Que culpa teve do franquismo em Espanha, como do fascismo em Itália ou do nazismo na Alemanha e na Áustria, na Hungria e na Croácia? Que culpa pelo estalinismo na Rússia ou do Maoismo na China? Nenhuma, nunca; acaba sempre por ser vítima e nunca é castigado (como é natural, não vai castigar-se a si mesmo; compadece-se e tem piedade de si mesmo). O povo mais não é do que o sucessor daqueles reis arbitrários, volúveis, só que com milhões de cabeças, isto é, descabeçado. Cada um olha-se ao espelho com indulgência e alega a encolher os ombros: “Ah, eu não fazia a mínima ideia. Manipularam-me, induziram-me, enganaram-me e desviaram-me. E que sabia eu, pobre mulher de boa-fé, pobre homem ingénuo.” Os seus crimes estão tão repartidos que se esborratam e diluem, e assim os autores anónimos ficam na disposição de cometer os seguintes, assim que se passam uns anos e já ninguém se lembra dos anteriores.” Pág. 293/294

Muitas foram as ocasiões em que me ocorreu ideia semelhante, que cheguei a verbalizar, mas nunca com a capacidade de empregar palavras tão contundentes. Foram elas que me fizeram recordar a vergonha recente que foi a abstenção em Portugal (quase 70%!) por ocasião das últimas eleições europeias. Nenhum político português no activo, nenhum!, nos censurou a todos veementemente a conduta infame. Preferem continuar a passar-nos a mão pelo pelo, como tanta gosta o nosso “Presidente dos afetos”, que se desfaz em elogios e insiste em propalar que somos os maiores quando, no meu entender, o povo português precisa de uns valentes puxões de orelhas e reprimendas frequentes pelo menos no que diz respeito à sua crónica falta de civismo e manifesta ingratidão. Foram as palavras certeiras de Javier Marías que me fizeram recordar, igualmente, a trapalhada do Brexit, porque se vulgarizou a desculpa de que o povo, coitado!, foi manipulado. E foram estas palavras que encaixaram que nem uma luva na realidade internacionalmente confrangedora do Brasil, liderado por um ignaro, na mesma semana em que os incêndios na Amazónia fizeram as manchetes nos jornais de todo o mundo.

(1) In Leitura e Terapia, de Clarice Fortkamp Caldin, Florianópolis, 2009

2 thoughts on “JÁ LI | Berta Isla, de Javier Marías

  1. Excelente texto Sandra. Para quando uma recorrente crónica literária numa publicação de referência? Tinha curiosidade em dar uma oportunidade a este livro, mas agora fiquei hesitante. A ver vamos se invisto o meu tempo. Obrigado

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    1. Obrigada, Gabriel! Talvez possas passar por uma livraria primeiro e demorar na leitura de algumas páginas. Já sabes, em última análise qualquer texto será sempre um texto diferente consoante o leitor que o lê. 🙂

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