Ler em voz alta: um pouco de história

Passado um ano sobre o início da minha atividade como Biblioterapeuta, verifico que grande parte dos projetos biblioterapêuticos em que me tenho envolvido estão relacionados com a leitura em voz alta. Quer como voluntária, quer como profissional, ler em voz alta para outros ou providenciar informação a quem vai ler em voz alta por alguma razão passou a fazer parte da minha rotina.

Tem sido entusiasmante testemunhar em primeira mão o revivalismo da leitura em voz alta, que vai muito para além da tradicional Hora do Conto que acontece em quase todas as bibliotecas nacionais. Aliás, à excepção de um projecto, todos os outros para os quais contribuí de alguma maneira no último ano não estão pensados para crianças, mas sim para adolescentes e adultos, e nenhum deles acontece em bibliotecas ou livrarias, isto é, nas habituais casas dos livros.

Assim como a humanidade abandonou, um dia, a norma de ler em voz alta para passar a fazer uma leitura silenciosa, também nós, quando crescemos e aprendemos a ler, deixamos de ouvir ler os nossos pais, avós ou irmãos mais velhos porque é suposto que passemos a ler sozinhos e, de preferência, em silêncio. E que assim seja, é uma pena… A leitura em voz alta encerra inúmeros benefícios — quer para quem lê como para quem ouve — e termos abdicado dessa prática empobreceu-nos a todos. Felizmente, um pouco por todo o mundo, leitores de todas as idades estão a reverter o processo e, ao fazê-lo, a transformar o mundo num lugar melhor.

A este propósito, ocorreu-me voltar a um dos melhores livros sobre leitura que alguma vez foi escrito: “Uma História da Leitura”. Na primeira parte desta obra, Alberto Manguel — autor argentino que na adolescência teve o imenso privilégio de ler em voz alta para Jorge Luis Borges, que ficara cego — dedica dois capítulos à dicotomia leitura em voz alta/leitura silenciosa: “Os leitores silenciosos” e “Leitura ouvida”. Baseio-me nesses dois capítulos para vos apresentar um resumo (muitíssimo resumido!) da história da leitura em voz alta e da sua metamorfose em leitura silenciosa. Estes são os principais pontos a reter:

  1. A leitura em voz alta foi a norma desde os primórdios da palavra escrita. As palavras escritas, desde os tempos das placas de argila sumérias, destinavam-se a serem pronunciadas em voz alta, visto que os signos traziam em si implícito, como se fosse a sua alma, um som particular. A palavra silenciosa na página era considerada imóvel e morta, enquanto que a palavra dita em voz alta tinha asas e podia voar.
  1. Por exemplo, as línguas primordiais da Bíblia — o aramaico e o hebreu — não diferenciam o ato de ler do ato de falar e designam ambos através da mesma palavra. E nalguns textos sagrados uma compreensão total dos mesmos requer não apenas os olhos, mas também o aparelho fonador e todo o resto do corpo, que oscila segundo a cadência das frases proferidas em voz alta. É o que acontece ainda hoje quando os judeus rezam junto ao Muro das Lamentações ou quando as crianças muçulmanas decoram os versículos do Corão na madrassa (os vídeos para os quais vos remeto são bem elucidativos).

           

 

  1. A leitura em voz alta tem, portanto, uma história longa:
  • Nos conventos da idade média, lia-se em voz alta no decorrer das refeições para distrair o espírito dos prazeres da carne e comungar da palavra santa;
  • Até à invenção da imprensa, era raro as pessoas saberem ler e os livros eram propriedade dos ricos, um privilégio de um punhado de leitores. A leitura em voz alta para grupos tornou-se, por isso, uma prática necessária e comum, também no mundo laico;
  • Desde o Século XI existiam por toda a Europa jograis itinerantes e trovadores que recitavam e cantavam textos de cor como forma de entretenimento;
  • Nas cortes e nas casas mais modestas os livros eram lidos em voz alta para familiares e amigos para instruir e distrair. Ouvir ler ao jantar, por exemplo, intensificava o prazer da refeição através de um entretenimento imaginativo;
  • Mais tarde, no início do Século XIX, quando o conceito de uma mulher erudita ainda não era aceite na Grã-Bretanha, ouvir ler tornou-se uma forma socialmente aceite de estudar;
  • Também na segunda metade do Século XIX surgiu em Cuba a instituição do Lector: os trabalhadores da indústria tabaqueira, a maioria analfabetos, compensavam a actividade mecânica e entediante de enrolar charutos com a audição de histórias que um trabalhador alfabetizado lia em voz alta (sendo pago pelos próprios colegas). É por isso que alguns dos charutos ainda hoje produzidos têm nomes que derivam de grandes obras da literatura universal, tal como “Romeu e Julieta” ou “Montecristo”.

  1. Foi somente no Século X que a leitura silenciosa se tornou usual no Ocidente, um processo demorado que aconteceu graças:
  • À gradual separação de letras em palavras e frases, uma vez que nos primeiros livros as letras apareciam encadeadas em frases contínuas;
  • À transformação do pergaminho (rolo) em códice, um manuscrito de papiro encadernado com páginas numeradas e textos organizados por secções;
  • À prática de iniciar um novo parágrafo com um traço divisor ou aspas e, mais tarde, com uma letra maiúscula;
  • À introdução, pelos escribas irlandeses do Século IX, dos sinais de pontuação que ainda usamos hoje em dia para isolar partes do discurso escrito e os constituintes gramaticais dentro de uma frase.

Volto a sublinhar: a informação que aqui partilho de forma resumida encontra-se na magnífica obra de Alberto Manguel intitulada “Uma história da Leitura”. Não me canso de recomendá-la vivamente!

No próximo post falar-vos-ei das vantagens de ler em voz alta para todos: para quem lê e para quem ouve, independentemente da idade.

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