Da página para a paz

“Muitas vezes uma aldeia dorme como a água de um tanque num dia sem vento, e um livro ou uns livros podem fazê-la estremecer e inquietá-la e ensinar-lhe novos horizontes de superação e concórdia.”[1]

As palavras são do poeta espanhol Federico García Lorca, proferidas em 1931. Recupera-as a escritora espanhola Irene Vallejo, em 2021, no seu “Manifesto Pela Leitura”, onde também nos recorda que a palavra “paz” partilha etimologia com a palavra “página” — uma das muitas superfícies sobre as quais a humanidade tem vindo a registar a sua interpretação e compreensão do mundo, movida pela necessidade de atribuir um sentido a tudo o que constata e experiencia, isto é, de responder à pergunta “porquê?”.

Segundo a escritora canadiana Nancy Huston somos “incapazes de constatar sem imediatamente procurar compreender”.[2] No seu livro “A Espécie Fabuladora”, Huston explica que só o ser humano sabe que nasce e morre, só nós temos “a intuição do que é uma vida inteira (…) só nós percebemos a nossa existência sobre a terra como uma trajectória dotada de sentido (…) Uma forma que se desdobra dentro do tempo, com um princípio, peripécias e um fim. Por outras palavras: uma narrativa”, que marca a passagem do tempo e “confere à nossa vida uma dimensão de sentido que os outros animais ignoram”.[3]

Graças à neurociência e à psicologia sabemos hoje que o ser humano procura dar explicações racionais sobre o mundo, procura interpretá-lo, mesmo perante lacunas de informação e de percepção da realidade. Por isso, nesse afã de interpretar, organizar e narrar para conferir sentido, todos nós efabulamos e ficcionamos de boa fé e sem o saber. Para Nancy Huston “o sentido é a nossa droga dura”.[4] Para outros pensadores interpretar, efabular e ficcionar, isto é, narrar para conferir sentido é um imperativo neurológico. É, pura e simplesmente, mais forte do que nós.[5] Por isso, já narrávamos muito antes do fabrico da página e muito antes da invenção da escrita.

Nancy Huston acrescenta: “Nenhum agrupamento humano foi alguma vez encontrado circulando tranquilamente na realidade como fazem outros animais: sem religião, sem tabu, sem ritual, sem genealogia, sem contos, sem magia, sem histórias, sem recurso ao imaginário, isto é sem ficções”.[6] Estas ficções foram construídas para responder às nossas inquietações primordiais e para nos organizarmos socialmente. Uma das funções das histórias humanas é a inclusão e a exclusão[7] e toda a identidade individual é construída sobre histórias que nos são inculcadas para que nos sintamos impregnados de um sentido colectivo e agregados a um grupo em detrimento de outros, instaurando e reforçando uma noção de um “nós” a partir de memórias e de um passado colectivo do qual cada indivíduo se orgulhe e não queira divergir.

Assim, há milénios que as narrativas transmitidas estabelecem uma origem e um trajecto específico que distingue cada comunidade e define valores, princípios, ideias, práticas, costumes e instituições. São essas narrativas que nos dão alento, oferecem orientação, inspiração, respostas, consolo e alívio ajudando-nos a viver melhor. Irene Vallejo afirma que “somos a única espécie que explica o mundo com histórias, que as deseja, tem saudades delas e as utiliza para o processo de cura”.[8] O historiador brasileiro Dante Gallian, no seu livro “A Literatura Como Remédio” defende a mesma ideia ao ver nas histórias um “remédio muito antigo, descoberto ou inventado ainda na aurora da humanidade e [que], ficando às vezes meio esquecido, precisa ser constantemente resgatado, para que essa mesma humanidade não adoeça mortalmente”[9], isto é, para que o tecido social que nos sustenta não se desagregue.

De certa forma, é de uma doença que nos fala também o filósofo Byung-Chul Han no seu mais recente ensaio publicado em Portugal — “A Crise da Narração”. Neste ensaio, o filósofo apresenta a narração como força antagónica ao storytelling: enquanto que através da narração são criadas novas formas de vida, se impulsionam novos começos e acções transformadoras do mundo, no storytelling (que é a narração instrumentalizada pela lógica hegemónica do mercado) “tudo se reduz ao consumo, o que nos torna cegos em relação a outras narrativas e a outras formas de vida, a outros meios de percepção e a outras realidades.”[10]

Permitam-me ler-vos um excerto da introdução deste ensaio. Escreve o autor: “Da narração nascem comunidades. A atividade de storytelling, por seu lado, apenas dá lugar a communities — comunidades em forma de mercadoria. A community é formada por consumidores. Nenhum storytelling será capaz de voltar a acender a fogueira à volta da qual as pessoas se juntam para contar histórias umas às outras. Há muito que as fogueiras se extinguiram. Foram substituídas por monitores digitais que isolam as pessoas, transformando-as em consumidores. Os consumidores são seres solitários. Não constituem nenhuma comunidade (…) O capitalismo apropria-se da narrativa por meio do storytelling ao mesmo tempo que a põe sob o jugo do consumo. O storytelling produz narrativas como forma de consumo (…) No nosso dia a dia contamos cada vez menos histórias uns aos outros. A comunicação enquanto troca de informação leva ao abandono da narração de histórias. As histórias criam laços entre as pessoas, uma vez que promovem a empatia. As histórias criam comunidades. A perda da empatia na era dos smartphones é um sinal eloquente de que tais aparelhos não são instrumentos narrativos (…) Além disso, a narração pressupõe o escutar atentamente e o estar profundamente concentrado. A comunidade narrativa é uma comunidade de ouvintes atentos. Contudo, estamos claramente a perder a paciência para escutar e, por consequência, a paciência para narrar (…) O storytelling é, sim, um fenómeno patológico da actualidade.”[11]

Um dos sintomas evidentes do quadro patológico que assola comunidades em Portugal e em todo o mundo é a hostilidade. Como combatê-la? Como alcançar os “novos horizontes de superação e concórdia”, dos quais falava Lorca? Como criar laços entre pessoas dispostas a ouvir atentamente o outro e a praticar a empatia, apesar de serem fruto de narrativas distintas? Como forjar comunidades dinâmicas, abertas a transformações e alicerçadas nos conceitos de “hospitalidade”, caros a Derrida e a Ricoeur e de “cidadania universal”, caro a Kant? Como aliviar esta cegueira “em relação a outras narrativas e a outras formas de vida, a outros meios de percepção e a outras realidades”? Como migrar do storytelling egótico, economicista e competitivo para a narração que acolhe, agrega, cuida e cura? Como voltar a acender a fogueira que põe fim à solidão e ao acantonamento?

Foi há cerca de doze anos que descobri uma área do conhecimento, uma prática ou uma arte, que parte do impacto que as histórias têm no ser humano para pôr em marcha o seu potencial transformador. É um método que permite cuidar do desenvolvimento contínuo de qualquer pessoa, através da relação subjectiva e de carácter existencial que cada um estabelece com as histórias. O seu objectivo geral é contribuir para o bem-estar dos indivíduos, e por inerência das comunidades, ajudando-os a viver melhor porque: melhora a capacidade de resposta aos acontecimentos da vida ao reconhecer e entender emoções; clarifica relações pessoais ao desenvolver a consciência de que as emoções e os sentimentos são universais; e melhora a orientação para a realidade ao ajustar ou corrigir a percepção acerca do mundo.

Falo-vos da biblioterapia, área à qual me dedico profissionalmente há oito anos e que tenho levado, desde então, para bibliotecas públicas, escolas, hospitais, estabelecimentos prisionais e empresas, procurando humanizar cada um destes espaços através das histórias que leio em voz alta. A biblioterapia é uma prática ancestral que responde não só aos anseios dos autores que citei anteriormente, como aos das pessoas reunidas aqui hoje, e tem dado provas concretas — documentadas e estudadas cientificamente — da sua eficácia na descoberta de novas perspectivas, no derrubar de preconceitos, na mudança das formas de pensar, no ajustar de atitudes e comportamentos, entre muitos outros benefícios físicos, psicológicos, intelectuais e espirituais. Sei, e não estou só nesta convicção, que a biblioterapia é uma das vias ao nosso dispor para a aproximação ao outro, para a construção de entendimentos e para a hospitalidade. É, ainda por cima, relativamente fácil de implementar de forma generalizada e a custos baixos.

Uma história espoleta processos de identificação, de apropriação do que é do outro, que ajudam quem ouve, lê ou vê a história a compreender os seus conflitos à luz dos conflitos e das circunstâncias dos personagens. Pela identificação, o indivíduo ousa aventurar-se por áreas que evitaria na vida real, tem uma oportunidade para falar dos seus próprios sentimentos disfarçados de sentimentos dos personagens, toma consciência das suas próprias motivações e reduz uma possível sensação de diferença face aos outros. Porque, afinal, uma boa história é como um laboratório onde podemos experimentar ser outro. Como escreveu a norte-americana Caroline Shrodes em 1949, naquela que foi a primeira tese de doutoramento sobre biblioterapia alguma vez arguida: “O ser humano deve estender a sua experiência para além do familiar e imediato, deve desenvolver tanto um sentido de pertença a todos os seres humanos, como um sentimento de tolerância e simpatia para com as pessoas que lhe sejam estranhas. A literatura pode estimular a percepção da sua identidade fundamental com outros e promover a sua socialização (…) pode enriquecer o entendimento (…) acerca dos outros e diminuir o medo dos estranhos, porque alcança as suas emoções tanto como os seus intelectos. (…) O reconhecimento das semelhanças humanas ajuda a dissolver as barreiras entre sexos, nacionalidade, raça e classe. A variedade de seres humanos cujas vidas são projectadas através das páginas de um livro proíbe a visão das pessoas como todas más ou todas boas.”[12]

Uma história dá aso a processos de introspecção, ao olhar para dentro de si à luz do que a narrativa traz, proceder a uma forma de auto-exame, explorar o que significa verdadeiramente a resposta emotiva à história e perceber se o que dá origem a essa resposta constitui um padrão que possa ser compreendido e transformado. É uma oportunidade para contrapor semelhanças e diferenças, para entender emocionalmente e intelectualmente as motivações de outras pessoas, reorganizar a percepção de si e dos outros, integrar em si outras possibilidade de pensamento e de comportamento. Para Clarice Caldin, brasileira também doutorada em biblioterapia, esta mudança pelas histórias não constitui uma perda de identidade, mas a prova de que o ser humano está num constante devir, num permanente movimento de construção de si mesmo.[13]

O francês Mark-Alain Ouaknin, também doutorado em biblioterapia, defende que uma história rica em metáforas e simbologia, que estimule a memória e a imaginação, transporta o ser humano para além de si mesmo, inscreve-o “num movimento de transcendência, de ultrapassagem de si (…) isto é, [n]uma abertura ao futuro”[14] e à “capacidade de arrancar-se aos múltiplos códigos que ameaçam constantemente aprisioná-lo.”[15] Para este especialista, “o primeiro momento da doença — e para nós, aqui e hoje, a doença é a hostilidade — é o enclausuramento, a impossibilidade de sair para além de si mesmo: autarcia e autismo. A cura é passagem, viagem e metáfora, saída de si, modalidade de ser dinâmica.”[16] A cura é uma história.

Uma história também permite a quem a lê, vê ou a ouve viver uma experiência de alteridade, isto é, permite “fazer um desvio (…) pela palavra do outro para escutar o eco das suas próprias palavras. A narrativa do outro vem fracturar-me, abrir-me a outra dimensão do mundo e de mim mesma. Encontrar a palavra do outro pode conduzir-me a mim mesma”[17], porque as palavras dos outros “dinamizam o meu universo psíquico e transmitem emoções que eu acabo por experienciar também.”[18]

Por último, uma referência muito especial ao papel do diálogo. Inscrevo-me na corrente de estudiosos e praticantes da biblioterapia que defendem que a prática biblioterapêutica eficaz só acontece quando, estimulado pelas histórias, o diálogo ocorre, é desejado e nutrido. Após a interacção com uma história, é fundamental e determinante que se possa conversar acerca dela. Ocorre um diálogo entre o indivíduo e a história, um diálogo consigo mesmo (pela introspecção), e um diálogo com o mediador do processo ou outros participantes nas actividades biblioterapêuticas. Portanto, não basta ler, ouvir ou ver uma história para que a terapia aconteça; só o diálogo acerca dessa experiência poderá espoletar respostas emocionais e potenciar processos de crescimento e transformação. Marc-Alain Ouaknin — para quem “a biblioterapia é uma vida em diálogo”[19] — vê o diálogo biblioterapêutico como uma recusa do enclausuramento, como um espaço de eclosão, expansão e abertura do ser humano livre para interpretar, comentar, inferir e descortinar novos sentidos numa história e na narrativa da sua própria vida.

Vejo a prática biblioterapêutica como uma clareira cheia de luz, um espaço de confluência, de encontro, de abertura, de diálogo, de respeito mútuo e sobretudo de despertar — para si mesmo e para os outros. Nesta prática, trabalhamos com vários tipos de histórias e com histórias em vários suportes. Numa lógica de inclusão à qual nunca fomos alheios, as histórias lidas em voz alta ou vistas num palco, por exemplo, são fundamentais — não nos esqueçamos que nem todos podem ler uma história escrita numa página. Porém, desde a invenção da imprensa, a página tem sido um veículo de importância capital para a disseminação das histórias que foram moldando, mudando e orientando as nossas vidas. Usemo-la, então, fazendo jus à sua etimologia, sabendo que dela pode emanar hospitalidade e apaziguamento.

Para terminar, trouxe, da minha farmácia literária, um dos remédios a que mais recorro. É um texto curto de Afonso Cruz e diz o seguinte:

“Uma gota de água junta-se a outra gota de água,

formando uma gota de água,

mas um grão de areia, quando se junta a outro grão de areia,

resulta em dois grãos de areia,

por mais juntos que estejam.

É que os grãos nunca deixam de ser eles,

um mais outro.

Sei que há momentos gotas de água

e há momentos grãos de areia,

e é claro que o mais difícil é decidir

quando devemos ser água e quando devemos ser areia,

mas é importante perceber que a coexistência dos dois

faz uma praia.”[20]

Obrigada.


[1] Vallejo, Irene, Manifesto Pela Leitura, Bertrand Editora, 2021, p. 45

[2] Huston, Nancy, L’espèce fabulatrice, France, Babel, 2000, p.16

[3] Idem, pp. 15-21

[4] Huston, Nancy, L’espèce fabulatrice, France, Babel, 2000, p.21

[5] Idem, pp. 65-67

[6] Idem, pp. 28-29

[7] Idem, p.85

[8] Vallejo, Irene, Manifesto Pela Leitura, Bertrand Editora, 2021, p. 17

[9] Gallian, Dante, A literatura como remédio ­— Os clássicos e a saúde da alma, Brasil, Martin Claret Editora, 2020, p.11

[10] Han, Byung-Chul, A crise da narração, Relógio d’ Água, 2024, p. 85

[11] Han, Byung-Chul, A crise da narração, Relógio d’ Água, 2024, pp. 13-15

[12] Shrodes, Caroline, “Bibliotherapy: A theoretical and clinical-experimental study”, 1940, p.160. Tese de doutoramento em Educação, Universidade da Califórnia, EUA.

[13] Caldin, Clarice, “Leitura e terapia”, 2009. Pp.185-186. Tese de doutoramento em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil.

[14] Ouaknin, Marc-Alain, Bibliothérapie: lire c’est guérir, France, Éditions du Seuil, 1994, p. 90

[15] Idem, p.142

[16] Idem, pp. 160-161

[17] Idem, p.16

[18] Idem, p.98

[19] Ouaknin, Marc-Alain, Bibliothérapie: lire c’est guérir, France, Éditions du Seuil, 1994, p. 196

[20] Cruz, Afonso, Paz Traz Paz, Companhia das Letras, 2019, p. 54

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