Ler em voz alta, derrubar preconceitos*

O meu bisavô Manuel adorava histórias — as que ouvia na rádio, as que via no cineteatro e as que lhe chegavam através dos livros.

Nascido em 1901, era filho de um homem que transportava gado e que na transumância entre o Algarve e o Alentejo saiu um dia de casa para nunca mais voltar. Em Portimão, deixou uma mulher grávida e três filhos. A pobreza abateu-se sobre os ombros do primogénito, o meu bisavô Manuel, que com pouco mais de sete anos teve de assumir o papel de homem da casa: encarou o mar, foi trabalhar nos galeões e aprimorou a arte de remendar redes. Pagavam-lhe por dia sete tostões e um pão. Embora mais tarde se tenha feito um excelente e muito requisitado mestre de pesca, este homem, Nobre de nome, ficou para sempre marcado pela sua primeira profissão. O meu bisavô Manuel foi o Manel da Rede até morrer.

O meu bisavô Manuel tinha cerca de quarenta anos quando perdeu a mulher e foi consumir a viuvez para a casa da filha, a minha tia-avó Eufémia. Datam dessa fase os episódios mais conhecidos da sua vida, aqueles que o meu pai, as minhas tias e os meus primos contam com gosto, uma e outra vez, destacando as suas célebres variações de humor. Se o meu bisavô Manuel fosse hoje vivo, muito provavelmente algum médico já teria diagnosticado a sua bipolaridade.

Havia as fases eufóricas, em que trabalhava no mar, ganhava o seu salário, tinha uma vida social rica, ia ao cinema, ao café do cine-esplanada (onde chegou a enxovalhar Salazar alto e bom som) e bebia para além da conta tornando-se irascível. E havia as fases depressivas em que mandava os patrões “à bardamerda” (alto e bom som, para não variar), abandonava o trabalho num rompante e se enfiava na cama durante meses. No quarto onde hibernava colava os ouvidos ao transístor para acompanhar as emissões da Rádio Moscovo e da Rádio Voz da Liberdade (transmitida a partir de Argel) e exigia aos netos — o meu pai, as minhas tias e os meus primos — que lhe lessem os livros com as aventuras do cowboy Tim Macoy que o meu tio-avô António, seu genro e grande leitor, comprava ou alugava.

Juntos, envoltos pelo fumo dos cigarros Definitivos que o meu bisavô Manuel fumava deitado na cama, avô e netos retrocediam no tempo, viajavam até ao faroeste americano e acompanhavam xerifes, índios e cowboys nas mais espectaculares aventuras. Porém, não era pouco comum essas leituras em voz alta aconteceram em clima de grande contrariedade. Por vezes, os netos do meu bisavô Manuel entravam em casa em bicos de pés, procurando não denunciar a sua presença e evitar o chamamento para ler. E quando não conseguiam fugir à tarefa, arriscavam saltar umas páginas do livro para despachar o serviço. Mas ao meu bisavô Manuel — que era homem inteligente, interessado nas coisas do mundo e ateu — ninguém enganava: podia não saber ler nem escrever, mas nunca perdia o fio condutor de uma boa história. Para além disso, sabia ser generoso: no fim dum “serviço” bem prestado pagava aos netos-leitores 2,50 Escudos para que fossem assistir a um filme no cineteatro, sentados nos lugares mais baratos da geral.

Muitas décadas volvidas, em 2016, quando me fiz voluntária no Hospital de Sto. António, foram várias as vezes que li em voz alta à cabeceira de pacientes internados tendo no pensamento a paixão do meu bisavô Manuel por histórias — apesar de tudo a que não teve acesso ou talvez por causa de tudo a que não teve acesso.

Enquanto biblioterapeuta, sei que ler em voz alta tem benefícios comprovados para todos — quem lê e quem ouve. Quem lê, por exemplo, pode descobrir camadas mais profundas no significado das palavras, aprimorar a articulação e a dicção dos vocábulos, melhorar a capacidade de expressão oral, tornar-se melhor ouvinte e melhor leitor silencioso. Quem ouve, por seu turno, descobre autores e textos que poderia nunca vir a conhecer, vê a sua imaginação estimulada, é chamado a expressar a sua opinião sobre o que ouviu e é contagiado pelo prazer de ler. Para leitor e ouvinte, esta actividade altruísta permite, ainda, a construção de relações e o estabelecimento de vínculos por vezes improváveis.

Mas o mais fascinante é observar o ruir de preconceitos.

Do ponto de vista da Biblioterapia, a leitura em voz alta em contexto hospitalar tem vários objectivos: fazer companhia e aliviar sentimentos de solidão, levantar o ânimo de quem está internado e combater a tristeza ou a melancolia, estimular a memória e a imaginação de quem ouve e fazê-lo viajar sem sair do lugar, conversar no seguimento da leitura e ajudar a passar o tempo. Tudo isto exige preparação, sobretudo uma escolha cuidada dos livros que se lêem, sem esquecer a adequação dos temas e o grau de complexidade dos textos. E ainda assim, de uma semana para a outra, mesmo que a leitura em voz alta decorra sempre no mesmo serviço hospitalar ou na mesma enfermaria, os pacientes mudam e nem sempre o voluntário encontra as mesmas pessoas. Um livro bem escolhido na semana anterior, não é garantia de escolha acertada na semana seguinte.

Esta característica da leitura em voz alta em contexto hospitalar constitui um desafio suplementar na escolha dos livros e pode acontecer não só o voluntário achar que os livro que levou consigo não se adequem ao paciente convidado a ouvir uma história, como o paciente pode achar que os textos que lhe são propostos são difíceis ou abordam assuntos que não lhe interessam. Uma boa dose de persistência, capacidade de persuasão e ânimo de ambas as partes têm vindo a provar a leitores e ouvintes que podem estar errados nas suas preconceções, nomeadamente quando o paciente não tem hábitos de leitura, exibe níveis notórios de iliteracia ou é mesmo analfabeto, como era o meu bisavô Manuel. No meu papel de voluntária testemunho que os objectivos estipulados à partida se atingem quase sempre e quem me ouve descobre, por norma, que é possível ficar fascinado pela história de um herói português que desconhecia ou emocionar-se com um conto espiritual de inspiração oriental e de linguagem menos comum.

Recordo, por exemplo, a mulher que me ouviu ler uma breve biografia de Aristides de Sousa Mendes e me contou, depois, o quanto se identificou com os refugiados judeus, porque também ela, havia muitos anos, tinha saltado as fronteiras até França com a ajuda de um passador, levando apenas os filhos consigo, um deles bebé de colo. Lembro-me também de uma outra paciente que me ouviu, com alguma renitência inicial, ler a história de Salgueiro Maia, para no fim me surpreender com a revelação de que esteve no Largo do Carmo no dia 25 de Abril de 1974. Ou a centenária analfabeta que a propósito de um conjunto de poemas sobre as estações do ano, recordou detalhes deliciosos da sua longa vida no Porto, onde nasceu ­— no ano em que o seu pai partira para França para combater na Primeira Guerra Mundial —, uma cidade então habitada por tecelãs e aguadeiras. Estivemos juntas cerca de uma hora. Os encontros foram efémeros. Mas a sua energia reverbera até hoje, porque uma vez derrubados os preconceitos ela expande-se sem encontrar barreiras.

É sabido que a humanidade precisa de histórias como de pão para a boca. Este é um traço cultural que nos distingue dos outros seres vivos, um meio através do qual interpretamos e explicamos o mundo à nossa volta e o mundo dentro de nós. Enquanto cidadã, leitora, voluntária e Biblioterapeuta sinto-me herdeira dessa fome de ouvir, ler e contar histórias. E enquanto optimista sem remédio, vejo nelas um elo que nos une e não tanto um muro que nos separa. Acredito que se as histórias derrubam preconceitos no microcosmo que é um hospital, podem derrubá-los em qualquer outro lugar. Como aconteceu a partir do quarto do meu bisavô Manuel, o Manel da Rede, o homem analfabeto disposto a pagar para ouvir histórias. Gosto de pensar que a energia dessa sua paixão atravessou o tempo e chegou até mim.

*Texto originalmente publicado no livro “Guia Experimental Para a Leitura em Voz Alta” (2021). Podem saber mais sobre o livro ou comprá-lo aqui: https://bit.ly/36zHASI

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