As leituras que recomendei entre Março e Abril, em artigos editados no jornal Público, a pensar nos desafios impostos pela pandemia, continuam válidas. Venho recordá-las na expectativa de que possam constituir leituras terapêuticas, já que as emoções que experimentamos nem sempre são fáceis de gerir:
1.ESTIMULAR A INTROSPEÇÃO E MANTER A SERENIDADE
Silêncio na Era do Ruído, de Erling Kagge, Quetzal Editores

Quão irónico é um vírus invisível a olho nu estar a obrigar o mundo inteiro a abrandar, quando uma das nossas maiores queixas é não termos tempo? Neste livro, Erling Kagge (aventureiro, explorador, filósofo e editor) descreve o silêncio como o grande luxo do século XXI, não só o silêncio ao nosso redor, mas o silêncio interior, aquele que permite nos ouçamos, num exercício de introspecção e de autoavaliação em qualquer circunstância. Um livro para fazer face ao stress, à impaciência, à tirania da eficiência, da produtividade e do crescimento constante, à futilidade, ao excesso de consumo, à desconexão de si, dos outros e da natureza, e até a uma certa pobreza espiritual. Perfeito para estimular o apaziguamento, a capacidade de estar no momento presente, a sobriedade, a resiliência, o equilíbrio, a leveza, a alegria e, quem sabe?, o reequacionar do rumo de vida também.
O Banco do Tempo que Passa, de Hubert Reeves, Gradiva

O canadiano Hubert Reeves é astrofísico, professor, comunicador de ciência, ecologista e descrito como “o poeta do espaço”. Qualquer leigo entenderá o que escreve a partir do seu olhar de astrofísico, mas também a partir da sua imensa cultura. Com ele adquirimos uma nova perspectiva sobre o lugar e o papel da Humanidade na história do Universo e da Terra. Um livro que alia ciências exactas, literatura, ecologia, filosofia e outras áreas do conhecimento para incrementar a nossa cultura geral, alargar os nossos horizontes, abrir caminho a uma visão caleidoscópica da realidade, estimular o questionamento, o pensamento em profundidade e a humildade. Adequado para contrariar as opiniões infundamentadas, as notícias falsas, as teorias da conspiração e o obscurantismo que estimulam o conflito social e minam a capacidade de cooperação. Uma leitura que nos ilumina, nos imbui de empatia e compaixão, valores essenciais em tempos de pandemia.
2.PROMOVER O EQUILÍBRIO MENTAL E A RESILIÊNCIA
A Árvore da Vida, de Pedro Strecht, Manufactura

Neste seu breve ensaio (apenas 81 páginas) acessível a qualquer leitor, Pedro Strecht evidencia que animais e plantas partilham 70% do ADN e espelha o corpo e a psique dos seres humanos nas árvores: ambos crescem de forma vertical, precisam de raízes (referências sociais, culturais, etc.) e de um tronco (por exemplo, valores orientadores). O estado de degradação a que chegaram as florestas, e por extensão a natureza em todo o planeta, é um reflexo, argumenta o autor, dos maus tratos infligidos à árvore que existe em cada ser humano, que se encontra desenraizado, solitário, distraído com o supérfluo e o superficial e que descuida a limpeza do seu jardim interior, isto é, a sua saúde mental.
A comunidade científica tem vindo a defender que a destruição dos habitats naturais — a par do aumento da população mundial e da rapidez com que esta se desloca e ocupa áreas intocadas —, permitiu que doenças que antes atingiam apenas animais chegassem aos seres humanos. Pensa-se que será o caso da Covid 19. Num momento em que nos é pedido mais recolhimento, o ensaio de Pedro Strecht permite-nos preparar um futuro próximo, quando pudermos de novo desfrutar do ar livre sem restrições, dando a essa experiência de contacto com a natureza um valor renovado e, no mínimo, redobrado. Amar e cuidar das árvores e de toda a natureza é cuidar de si e, num exercício de solidariedade, cuidar dos outros também. É alcançar uma forma de solidez e de rectidão que contribui para o equilíbrio de cada um e de toda a sociedade.
É Isto Que Eu Faço, de Lynsey Addario, Marcador

Lynsey Addario, nasceu em 1973 nos EUA, e é a mais nova de quatro irmãs. Começou a fotografar aos treze anos, quando o pai lhe ofereceu a sua primeira câmara fotográfica. Conseguiu o seu primeiro trabalho como fotojornalista freelance em Buenos Aires, na Argentina, em 1996 começa a trabalhar para a Associated Press, em Nova Iorque, e em 2000 muda-se para Índia para fazer a cobertura fotojornalística do sul da Ásia. Fotografa na Índia, no Paquistão, no Afeganistão e no Nepal, dando especial atenção aos direitos humanos e às questões das mulheres. Após o 11 de Setembro, volta ao Médio Oriente para testemunhar as consequências da guerra. A partir daí — no Paquistão, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, no Darfur, na República Democrática do Congo, na Somália — afirma-se como uma das maiores fotojornalistas do nosso tempo.
A história de vida de Lynsey Addario é excepcional, a sua carreira, brilhante e o seu exemplo de abnegação, determinação e coragem verdadeiramente inspirador. As suas memórias, ao mesmo tempo que denunciam desigualdades e injustiças revoltantes sofridas noutras latitudes, ajudam a colocar em perspectiva os nossos privilégios, a tomar consciência deles e a persistir a partir dessa vantagem. Espero que possam ir beber força a estas páginas, ao mesmo tempo que aprimoram a vossa capacidade empática e de compaixão, aliados imprescindíveis no combate À Covid 19 e a outros flagelos.
3.VIVER MELHOR O DEVER CÍVICO DE RECOLHIMENTO
Olá, Farol!, de Sophie Blackall, Fábula

Este pequeno livro premiado leva o leitor a viajar até aos tempos em que os faróis não eram mecanizados e a profissão de faroleiro/a estava longe de se extinguir. Através do texto simples, delicado e das belíssimas ilustrações é possível acompanhar a vida destes profissionais — maioritariamente homens, embora também tenham havido faroleiras — sujeitos a grandes períodos de isolamento, mas nem por isso livres de rotinas muito exigentes.
Um livro que, para além de dar dicas sobre como ocupar o tempo em períodos de maior recolhimento, estimula a reflexão sobre a firmeza do carácter, o espírito de compromisso, o sacrifício, a persistência perante as adversidades, a coragem, a capacidade empreendedora, a disciplina, o brio profissional (podendo ser feito um paralelismo com a exigência do trabalho e do estudo que agora se fazem em casa), a solidariedade e a gratidão (porque os faroleiros, tal como nós agora, dependiam dos serviços de terceiros sem os quais não sobreviveriam), o companheirismo, o amor e o respeito, num tom optimista e alegre.
Teoria Geral do Esquecimento, de José Eduardo Agualusa, Quetzal Editores

Ludovica, uma mulher portuguesa, parte contrariada para Angola e é apanhada de surpresa pela independência do país e tumultos que daí resultam. Movida pelo medo, à medida que o seu prédio se vai esvaziando de colonos portugueses, decide emparedar-se no apartamento onde reside e assim vive trinta anos, completamente isolada. Até que surgem outros personagens, que lhe trazem novas do mundo e não só.
Um romance que explora o medo e os seus efeitos em tempos de anormalidade, testemunha a destreza, a astúcia e a resiliência necessárias para sobreviver num quadro de confinamento (com todas as carências e fragilidades que daí resultam) e gerir recursos escassos. Mas que veicula também uma mensagem de esperança e fé, alimentada pela capacidade de entreajuda e solidariedade que chega muitas vezes pelas mãos de quem menos se espera.
4.ESTIMULAR A EVASÃO E AS GARGALHADAS
As Mil e Uma Noites, Imprimatur

Aqui está um daqueles livros que alimentam a imaginação colectiva há séculos — porque a partir dele ganharam vida própria muitas histórias e personagens e se formaram e perpetuaram arquétipos — mas que poucos lêem, dissuadidos, talvez, pela sua extensão. Porém, a chegada ao mercado de uma excelente edição d’ “As Mil e Uma Noites” em dois volumes, traduzida para português a partir dos mais antigos manuscritos árabes, é um óptimo pretexto para abraçar esta viagem até à alta Idade Média, quando os sofisticados persas dominavam uma parte considerável do mundo então conhecido.
Para além da evasão mental que proporciona em tempos de reclusão, este livro permite combater o preconceito e o medo face a culturas diferentes, promove uma atitude ecuménica, de tolerância e coexistência, sensibiliza para o fosso entre pobres e ricos, potencia inúmeras reflexões sobre a condição da mulher e pode despertar a vontade de contar e escrever histórias. Há quem defenda, ainda, que pode aliviar a frigidez.
Lisboa em Camisa, de Gervásio Lobato, Guerra & Paz

Esta pérola da literatura portuguesa esteve injustamente esquecida durante demasiado tempo, mas voltou em grande às livrarias nacionais. Não percam a oportunidade de se divertirem e rirem até às lágrimas enquanto acompanham a história das caricatas famílias Antunes, Martim e Torres que habitaram Lisboa no final do século XIX, mas podiam muito bem ser os vossos familiares próximos, amigos, vizinhos ou colegas de trabalho dos dia de hoje e em qualquer parte do país.
“Lisboa em Camisa” potencia não só a reflexão sobre o que é ser português, mas também sobre o que é a verdadeira natureza da vida, que quase nunca é tão glamourosa como alegamos. Há um potencial catártico no aceitar das verdades que se dizem a brincar — o alimentar de falsas aparências, os tiques arrivistas, o mexerico, a intriga e a ingerência na vida alheia, a necessidade de protagonismo ou o recurso à velha cunha, por exemplo. E saber rir de nós mesmos é uma virtude.
Boas leituras!